A escola e o ensino da norma culta
Prof. Dr. Marco Antônio Bomfoco
A educação brasileira deteriorou a tal ponto que a gramática do vernáculo não é mais ensinada. A escola tem a responsabilidade de ensinar a norma culta, também chamada de língua padrão, não como uma
imposição arbitrária, mas como uma competência prática que capacita os alunos a
se comunicarem em diversos contextos, especialmente os que exigem formalidade. Esse
ensino não exclui a importância das variações linguísticas, ou seja, das regras
que regem outros níveis de uso da língua; ao contrário, assegura que todos os
alunos estejam capacitados a se comunicar com eficácia em situações que
demandam formalidade e precisão. O aluno de português, ciente das diversas variedades
e registros da língua, torna-se capaz de escolher as variedades adequadas para
a sua intenção comunicativa, tanto na fala quanto na escrita. Assim, a escola
respeita a diversidade linguística, ao mesmo tempo em que capacita os alunos a transitarem
por variados contextos sociais e profissionais, sem descuidar da responsabilidade
de promover a padronização e a uniformidade exigidas em situações formais de
estudo e vida profissional.
Contudo, alguns linguistas, ao adotarem
exclusivamente uma política de aparente utilidade prática, têm deixado de lado a busca
da verdade por si mesma, em favor de um discurso que agrada ao “povo”, às
custas de princípios mais elevados. Vale destacar, porém, que essa postura não
é uma consequência necessária das teorias linguísticas. Se hoje a concepção linguística,
revestida de uma roupagem ideológica, tem a preferência de pedagogos
progressistas, nada impede que, no futuro, uma nova geração, reconhecendo o
caos que tais ideias trouxeram para o ensino, valorize novamente uma abordagem
mais equilibrada, que concilie a importância da norma culta com o respeito pela
diversidade linguística. Assim, o ensino da língua pode reassumir um papel
formador, preparando os alunos para uma comunicação eficaz e consciente em
diferentes contextos, sem comprometer a clareza e a coesão exigidas nos âmbitos
formais. Esse objetivo torna-se ainda mais relevante quando consideramos que, há
pelo menos duas décadas, os alunos brasileiros ocupam posições inferiores em
exames internacionais de leitura, ciências e matemática. O desempenho negativo revela,
em parte, o desconhecimento da norma culta, que restringe a capacidade de
leitura e compreensão de textos mais complexos. A falta de familiaridade com a língua
culta impede muitos alunos de acessar plenamente conteúdos acadêmicos e de se
expressar com clareza em contextos formais, comprometendo, assim, o
desenvolvimento de competências essenciais para o exercício pleno da cidadania.
Portanto, a “abordagem imparcial” em relação à língua defendida pelos
progressistas adeptos do cientificismo linguístico é, na verdade, uma visão parcial,
pois não existem descritivistas “puros”. Na verdade, esses autores consideram a
língua como uma mera coleção de eventos a serem registrados de forma mecânica[1], ignorando a necessidade
de normas que garantam a clareza e a efetividade na comunicação. Assim, a norma
padrão não deve ser vista apenas como um conjunto de regras, mas como um
instrumento crucial para a inclusão e a formação crítica dos indivíduos na
sociedade. Sem a devida atenção à norma culta, não pode existir alta cultura; e,
sem essa base, corre-se o sério risco de comprometer a integridade e a coesão
de uma nação. Sua desconsideração pode levar à fragmentação cultural e à erosão
dos valores que sustentam uma sociedade coesa e bem-informada. Em resumo, repudiamos
aqui duas atitudes extremadas: a) a ideológica, que sustenta que “certo e
errado não cabem na escola”, promovendo uma ruptura radical com as tradições cultas
da língua; e b) a beletrista, que busca equiparar, de forma igualitária, a
vertente literária à normativa (norma gramatical), gerando confusão e favorecendo
a proliferação de exceções às regras. Esse fenômeno é perceptível em gramáticas
de amplo escopo que, ao mesmo tempo, procuram descrever as características da
modalidade culta com base nos escritores literários brasileiros e portugueses
do Romantismo em diante e abordam as formas da língua falada, mesmo quando carregadas
de elementos afetivos.
Por fim, é importante destacar que a
crítica à norma culta, que sugere que a mudança linguística possa levar ao reconhecimento
do que é considerado ‘incorreto’ como ‘correto’, não se sustenta. Essa tese é
discutível. Parece-nos precipitado afirmar a incorporação de uma alteração, especialmente
considerando que se trata de um fenômeno cuja complexidade e dinamicidade ainda
não compreendemos totalmente. A linguagem culta formal não se fundamenta na
aceitação de usos ocasionais ou regionais como padrão; ela se apoia em regras
estáveis e ideais que asseguram clareza e uniformidade nos contextos formais. Embora
a mudança linguística seja um processo natural ao longo do tempo, isso não implica
que todas as variações dialetais ou coloquialismos devam ser prontamente incorporados
à norma culta. A língua culta deve refletir seu tempo, sendo contemporânea e
evitando um caráter arcaizante. Contudo, deve manter o equilíbrio entre
autenticidade e estabilidade, rejeitando tanto o artificialismo beletrista
quanto a incorporação de vocabulários transitórios oriundos de regionalismo ou
coloquialismos menores. Além disso, é preciso não esquecer que a mudança
linguística não abrange todas as formas de todos os dialetos, reforçando a
necessidade de um padrão como ponto de referência comum. Esse padrão é
essencial para assegurar uma comunicação eficaz e evitar ambiguidade. A norma
culta garante um nível de consistência e previsibilidade indispensável à
compreensão em contextos amplos. Ela é vista como um sistema estável não por se
opor à mudança, mas por resistir à confusão (deriva) e à eliminação de distinções
importantes. Assim, ao abordar a norma padrão, torna-se essencial considerar sua
função sociocultural, transcendendo seu papel de expressividade e elegância
literária. A comunicação em áreas como direito, política, diplomacia, medicina,
tecnologia e ética depende da preservação de um meio de troca cujos valores sejam
tão estáveis quanto possível, de forma similar ao funcionamento de uma moeda
confiável. Nesse contexto, Charlton Laird[2] enfatiza que a língua não
pode ser apenas flexível para viver e crescer, mas deve também possuir
validação para garantir sua compreensão. Existe, sim, uma forma correta de
falar e escrever, amplamente esperada na comunidade de falantes educados, que assegura
a intercompreensão. A gramática padrão, neste sentido, desempenha um papel essencial
ao possibilitar a construção de discursos mais articulados e aprofundados, fornecendo uma base de regras
formais estáveis. A padronização linguística não apenas garante a continuidade
e o desenvolvimento da comunicação em áreas de relevância social, como também equilibra
a inovação linguística com a necessidade de uma compreensão ampla e precisa.
Dessa
forma, a aula de português eficaz não exige submissão à norma culta, mas busca ampliar
os conhecimentos linguísticos dos alunos, apresentando-lhes essa modalidade de
uso mais abrangente e compartilhada. Importa reforçar que isso não significa
sufocar a espontaneidade ou – e aqui vale destacar o equívoco proposital de
alguns detratores – ensinar uma língua irreal. A norma padrão, embora seja um
ideal, possui um valor real e prático, pois facilita o acesso a formas mais
amplas de comunicação, participação social e cidadania ativa. Tanto a descrição
da língua padrão quanto a da fala coloquial compartilham, em certa medida, a
característica de serem construções ideais, em vez de reflexos exatos do uso
linguístico real. De fato, a gramática descritiva busca retratar objetivamente
a estrutura e as regras de uma língua, mas generaliza ao abranger diferentes
falantes, regiões e contextos, congelando um sistema dinâmico em um modelo
idealizado. Da mesma forma, as descrições da linguagem coloquial procuram
capturar o uso informal e cotidiano, mas precisam simplificar a ampla
variabilidade, a dependência do contexto e a rápida evolução das expressões
coloquiais. Conquanto não existam descrições puras, é possível reconhecer facilmente
o grau de distanciamento da língua padrão.
De
qualquer forma, ao abordar a linguagem e sua longa e complexa trajetória, é fundamental
reconhecer, com humildade, que o resultado é sempre um quadro incompleto: uma
representação abstrata e generalizada, que, embora funcione como uma ferramenta
prática para compreender os fenômenos linguísticos, não consegue capturar
plenamente a complexidade e a fluidez do uso real.
Enfim,
o domínio da norma culta não deve ser visto como um elemento opressor, mas como
uma ferramenta poderosa que amplia horizontes e conecta indivíduos em esferas
mais diversas e significativas. Isso porque, embora esteja aberta a variações,
a língua culta, em registro formal, é a forma mais estável entre as diversas variantes
linguísticas. Conclui-se que a norma culta, fundamentada no ideal da gramática normativa,
supera a fala coloquial ao oferecer estabilidade, sistematização e
funcionalidade universal. Enquanto a linguagem coloquial é fluida e limitada
por contextos específicos, a norma culta permite comunicação precisa,
construção de textos complexos e transmissão de conhecimento científico. Sua
descrição linguística organiza padrões consistentes, garantindo abrangência e
eficácia em situações que demandam clareza e universalidade, reafirmando sua
superioridade como instrumento de expressão formal e conexão social.
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