Prof. Dr. Marco Antônio Bomfoco
A Bíblia apresenta uma cosmologia que vai além do visível, descrevendo uma realidade espiritual organizada em diferentes “céus” e marcada por conflitos invisíveis. Essa visão é perceptível em livros proféticos e apostólicos, onde se delineia uma geografia espiritual que inclui o céu físico ou visível (a abóboda do firmamento, a atmosfera terrestre), um espaço intermediário de conflito espiritual (o céu espiritual invisível para os seres humanos, onde estão as potestades e principados) e o trono ou morada de Deus (no terceiro céu).
Em Daniel 10:12–13, o profeta relata a visita de um mensageiro celestial que, embora despachado por Deus no primeiro dia da oração, demorou vinte e um dias para chegar devido à oposição do “príncipe do reino da Pérsia”. Esse personagem, identificado por muitos intérpretes como uma entidade espiritual hostil, representa forças demoníacas que exercem influência sobre regiões e povos. A intervenção de Miguel, um dos “príncipes” celestiais, permite a continuidade da missão. O texto expõe não apenas a existência de uma batalha invisível, mas também a possibilidade de resistência espiritual significativa à ação divina no mundo humano.
Séculos depois, o apóstolo Paulo retoma essa perspectiva. Em Efésios 2:2, ele fala do “príncipe da potestade do ar”, expressão que associa a esfera atmosférica a um domínio espiritual sob influência de Satanás. Em Efésios 6:12, Paulo reforça que a luta cristã “não é contra carne e sangue, mas contra principados, potestades e forças espirituais do mal nas regiões celestes”. Ao empregar “regiões celestes” (ou “heavenly places”), ele não se refere ao céu da presença de Deus, mas a um domínio intermediário - o que a tradição cristã posterior chamou de “segundo céu” - onde se trava uma guerra contínua entre anjos e demônios.
Em 2 Coríntios 12:2, Paulo menciona ter sido arrebatado ao “terceiro céu”, termo que implica a existência de, pelo menos, dois céus inferiores: o primeiro, físico e visível (Gênesis 1:6-8, Salmo 19:1); o segundo, espiritual e conflituoso (Efésios 6:12, Efésios 2:2); e o terceiro, morada de Deus (2 Coríntios 12:2). Essa estrutura celeste encontra eco em tradições judaicas intertestamentárias, que descrevem múltiplos céus com diferentes funções e habitantes.
O conjunto desses textos oferece uma visão coerente: o mundo visível está interligado a uma realidade espiritual complexa, onde o mal não é apenas uma força interna ao ser humano, mas também uma presença ativa em esferas superiores. A oração, o jejum, a fidelidade e a vigilância espiritual aparecem, assim, como instrumentos indispensáveis de resistência, não apenas para enfrentar tentações individuais, mas para participar, de forma misteriosa, na vitória de Cristo sobre poderes que atuam além do que os olhos podem ver.

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