O ensino da gramática e o chamado preconceito linguístico
Dr. Marco Antônio Bomfoco*
A correção linguística e a adesão a normas objetivas não devem ser vistas como formas
de preconceito, mas como elementos essenciais para evitar ambiguidades e
garantir clareza na comunicação. A pressuposição de que a norma padrão é
necessariamente a linguagem da elite privilegiada social e culturalmente é, na
verdade, uma ideia prejudicial e autodestrutiva. É descabida a atitude de
condenar a norma padrão sob a alegação de que ela restringe a diversidade
linguística, pois isso desconsidera a capacidade natural dos falantes de
alternarem entre diferentes modalidades linguísticas conforme o contexto, uma
habilidade que o gramático Evanildo Bechara descreve como ser “poliglota na
própria língua”. Sem uma variedade formal, como poderia o cidadão participar efetivamente
do discurso público? O objetivo da norma padrão é proporcionar uma base comum
para aprender e para discutir questões e problemas relevantes. Por outro lado,
a fala coloquial, que também apresenta níveis e está longe de ser uniforme
(afinal, nada na linguagem o é), pode ser comercialmente padronizada, com a
mídia frequentemente criando variações fonéticas e gramaticais que nem mesmo
existem nos falares regionais. Essa postura evidencia um duplo padrão de
pensamento: enquanto criticam a fixação da norma culta, aceitam a padronização
da linguagem coloquial em contextos comerciais. Isso levanta a importante questão
de como as diferentes formas de expressão linguística são valorizadas e
utilizadas em nossa sociedade. Portanto, o foco na norma culta não é uma forma de
discriminar, mas de assegurar que a comunicação seja clara, compreensiva e
eficaz, permitindo que todos os cidadãos participem do debate público de modo
acessível e produtivo, além de terem acesso a informações relevantes. É
importante, assim, reconhecer que o uso exclusivo da linguagem coloquial ou de
gírias locais pode limitar seus falantes a um gueto sociocultural, dificultando
sua integração em espaços mais amplos de interação social[1]. Afinal, o que seria mais
democrático: adotar a norma padrão como uma língua comum, acessível a todos, ou
exigir a aprendizagem de uma infinidade de subfalares[2] efêmeros e fragmentados? Alguns
podem achar curiosas ou divertidas as expressões coloquiais e os sotaques
artificiais frequentemente usados em novelas comerciais de TV ou na música
cacofônica tocada nas rádios. Contudo, é essencial refletirmos sobre o impacto negativo
que essas manifestações podem ter, pois reforçam divisões de classe, idade ou
grupo social, isolando comunidades em linguagens excessivamente autocentradas. A
linguagem, afinal, tem como propósito conectar indivíduos, fomentar interações
diversas e garantir o acesso a um conhecimento mais amplo – algo que só se
torna verdadeiramente viável por meio da gramática da norma culta e da
língua-padrão.
É
verdade que a linguagem coloquial e as diversas gírias são manifestações
essencialmente legítimas e criativas, que refletem a identidade cultural e a
vivência de seus falantes. Contudo, mostram-se limitadas quando comparadas à
linguagem cultivada ou padrão, tanto em profundidade (verticalidade) quanto em
alcance (horizontalidade). Explicamos “verticalidade” como a capacidade de uma
linguagem de abordar temas abstratos, técnicos ou culturais de maneira precisa
e detalhada. A linguagem coloquial, por sua limitação vocabular e informalidade
estrutural, frequentemente falha em articular ideias complexas ou em servir
como veículo para o pensamento crítico e a transmissão de conhecimento formal.
Já “horizontalidade” diz respeito à abrangência social da norma padrão:
enquanto as gírias e o coloquialismo confinam seus usuários a grupos específicos,
quase tribais – funcionando como uma espécie de senha local –, a linguagem
padrão atua como uma língua pública ou geral, facilitando a comunicação entre
diferentes grupos sociais, culturais e regionais. Essa distinção encontra
respaldo em discussões amplas, como as abordadas por E. D. Hirsch Jr.[3], que argumenta que a
proficiência na linguagem padrão é um instrumento fundamental para o sucesso
educacional e a mobilidade social. Segundo Hirsch, a norma padrão transcende os
limites de classe e região, facilitando a integração dos indivíduos no que ele
chama de “cultura comum” – uma ideia que nos parece essencial para o
funcionamento de uma sociedade democrática.
Por outro lado, é essencial destacar que o objetivo da gramática normativa da língua culta não é desmerecer a espontaneidade e a autenticidade da língua falada ou coloquial, mas sim reconhecer que suas limitações se tornam evidentes em contextos que exigem precisão, formalidade ou universalidade. Embora rica em expressividade emocional e identidade cultural, a língua coloquial carece da flexibilidade e do rigor necessários para servir como base de uma comunicação acadêmica ou universal. Nesse sentido, o valor distintivo da norma padrão reside em sua capacidade de equilibrar inclusão e precisão, promovendo tanto o diálogo quanto o progresso cultural.
* Academia Passo-Fundense de Letras e Associação Internacional de Lusitanistas.
[1]
Bénédicte de Boysson-Bardies. ¿Qué es el lenguaje? México: FCE, 2007, p. 230.
[2] Adotamos o termo técnico
‘subfalar’, embora com um significado distinto, inspirando-nos no uso dado por Antenor
Nascentes ao dividir o falar brasileiro em seis subfalares, conforme apresentado
em O linguajar carioca (Rio de Janeiro: Simões, 1953).
[3] E. D.
Hirsch Jr. Why knowledge matters: rescuing our children from failed
educational theories. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2016.
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