“As grandes alegrias provêm da contemplação das belas obras.”
(Demócrito de Abdera)
Tópicos
O poeta.
O percurso poético: obras principais.
Panorama da literatura da época.
Temas e características.
Leitura e análise: soneto “Matinal” (1989).
O poeta
A biografia de Mário Quintana - poeta, cronista, tradutor, jornalista - revela a
dedicação de uma vida inteira voltada às letras.
1906 - Nasce em Alegrete, 30 de julho, Mário de Miranda Quintana. Quintana
tem três irmãos: Milton (mais velho), Marietta e Celso (caçula, que falece aos 6
anos).
1919 – É matriculado no Colégio Militar - Porto Alegre (interno).
1924 – Emprega-se na Livraria do Globo, trabalhando com Mansueto Bernardi.
1925 – Em Alegrete, trabalhando na farmácia do pai (Pharmacia Quintana).
1926 – Morre a mãe (D. Virgínia); é premiado no concurso de contos do jornal
Diário de Notícias de Porto Alegre (concorrendo com mais de 200 inscritos).
1927 – Morre o pai (Seu Celso). Tem poemas publicados em jornais e revistas
do Rio de Janeiro (aceitos por Cecília Meireles e Álvaro Moreyra).
1929 – Em Porto Alegre, ingressa na redação do jornal O Estado do Rio Grande,
dirigido por Raul Pilla (maragato). O jornal é de orientação liberal e defende a
Formação da Aliança Liberal, entre MG e RS, para o lançamento da candidatura
de Getúlio Vargas.
1930 – Alista-se como voluntário do Sétimo Batalhão de Caçadores de Porto
Alegre, partindo para o Rio de Janeiro precedendo a chegada de Getúlio Vargas.
1931 – De volta à redação de O Estado do Rio Grande.
1934 – Primeira tradução publicada pela Editora Globo: Palavras e sangue
(contos), de Giovanni Papini. Segue como tradutor contratado da Globo até
1953.
1940 – Primeiro livro publicado: A rua dos cataventos (sonetos).
1953 – Ingressa no jornal Correio do Povo. Começa a publicar a coluna “Do
Caderno H” (até 1980). A partir de 1943, essa seção começou a ser publicada na
Revista Província de São Pedro.
1989 – É eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros, entre escritores de todo o país,
eleição promovida pelo Jornal do Brasil. Recebe o título de Doutor Honoris
Causa (Unicamp, UFRJ, Unisinos, UFRGS, PUCRS).
1994 – Falecimento em Porto Alegre.
O percurso poético: obras principais
A rua dos cataventos (sonetos, 1940), Canções (1946), Sapato florido (poemas
em prosa, 1948), O aprendiz de feiticeiro (1950), Espelho mágico (quadras, 1951),
Antologia poética (1966, organizada por Rubem Braga e Paulo Mendes Campos),
Caderno H (1973), sua “trilogia” composta por Apontamentos de história sobrenatural
(1976), Esconderijos do tempo (1980) e Baú de espantos (1986) (inclinação ao
sobrenatural, ao onírico), Lili inventa o mundo (poemas para a infância, 1983) e A cor
do invisível (1989).
Parentesco poético: Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Manuel
Bandeira, Augusto Meyer e Guilherme de Almeida.
Parentesco poético com europeus: Camões, António Nobre, Verlaine e Apollinaire.
Panorama da literatura da época
Quintana, segundo Tânia Franco Carvalhal, desde a estreia literária em 1940,
não cede ao gosto da época: “é um autor à procura de uma expressão própria,
comprometido apenas com ele mesmo.” (“Quintana, entre o sonhado e o vivido”, Mário
Quintana, IEL, 8ª. ed., 2000, p. 17).
1922 – Semana de Arte Moderna – Mário de Andrade é a figura central do movimento
modernista: invenção rítmica (exploração do verso livre e a estrofação irregular
alternam com versos de métrica tradicional dispostos em estrofes regulares), humor,
paródia, temas cotidianos, linguagem coloquial. Os modernistas atacaram esp. a poesia
parnasiana. Pregavam a inserção da cultura em nossas raízes nacionais. Em 1924, Graça
Aranha profere na ABL o seu “discurso-bomba”, criticando o conservadorismo da
instituição e defendendo os ideais do modernismo.
1930 a 1945 – Segunda etapa modernista. Reafirmam-se as características da primeira
etapa e amplia-se o leque temático, com maior diversificação de estilos. Destacam-se:
generalização e aprofundamento do estilo misto ou mesclado (o estilo ora é “puro”
(elevado ou poético), ora é vulgar ou grotesco); preocupação universal; imagens
arrojadas ou oníricas (semelhantes ao sonho); envolvimento do escritor na questão
social (na prosa, inicia-se o ciclo neorrealista do Nordeste com José Américo de
Almeida, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado); reflexão sobre a
natureza da poesia.
1945 - Geração de 1945 (alternativa ao projeto modernista): retomada das formas
poéticas mais tradicionais, com rigor formal, valorizando a métrica, o soneto e a
linguagem mais contida (séria). Diferente da liberdade (ou anarquia?) modernista,
prezavam por equilíbrio e introspecção. Os temas existenciais, universais e filosóficos
tornaram-se centrais. Destacam-se poetas como João Cabral de Melo Neto, Ferreira
Gullar e Lêdo Ivo.
Temas (sobre o que o poeta escreve) e características (como ele escreve)
Temas: passagem do tempo, morte, infância e memória, vida cotidiana, amor, alegria de
viver e a própria poesia.
Características (estilo, tom, técnicas distintivas): ironia, leve melancolia, concisão,
tom lírico e reflexivo, poesia confidencial, identificação com o leitor, humor sutil e
engenhoso, crítica ao progressismo, liberdade criadora (rima irregular, complexidade
rítmica), prosa poética, metalinguagem (reflexão sobre a natureza da poesia e a função
do poeta), imagens do cotidiano, língua culta, estilo elevado (poético), elegante (puro),
impressionista (nos sonetos de A rua dos cataventos), - postura contemplativa
(inspiração intimista), adotando “meias-tintas” (maneira sutil, imprecisa e subjetiva),
além de formulações como as sinestesias, jogos de aliterações e assonâncias, rimas
internas, uso de maiúsculas (como “Desesperança”), reticências (que têm mais do que
uma função de pausa, sendo usadas como apelo visual e prolongamento das sugestões
verbais), uso da indagação (sem o sentido literal da pergunta).
Leitura e análise: soneto “Matinal” (1989)
MATINAL
Entra o sol, gato amarelo, e fica
à minha espreita, no tapete claro.
Antes de abrir os olhos, sei que o dia
Virá olhar-me por detrás das árvores.
Ah! sentir-me ainda vivo sobre a face da Terra
enquanto a vida me devora...
Me espreguiço, entredurmo... O anjo da luz espera-me
Como alguém que vigiasse uma crisálida.
Pé ante pé, do leito, aproxima-se um verso
para a canção de despertar;
os ritmos do tráfego vibram como uma cigarra,
a tua voz nas minhas veias corre,
e alguns pedaços coloridos do meu sonho
devem andar por esse ar, perdidos...
(De A cor do invisível)
Observações iniciais para análise do texto:
Tema: a relação entre vida e morte.
- Conflito básico do soneto: a recordação da morte em meio ao chamamento da vida (v.
5-6).
- Tratamento novo do soneto italiano: irregularidade métrica (combinação de versos de
8, 10 e 12 sílabas = nova musicalidade); rimas assoantes (ou toantes), nas quais só há
coincidência entre vogais (fica/dia; claro/árvores); rimas anômalas (na segunda estrofe,
a rima entre /ò/ e /a/, e na terceira e quarta a rima entre /è/ e /ò/, rimas internas
(coloridos/perdidos; andar/ar).
- Poesia confidencial (tom de diário íntimo).
- Tom melancólico (cf. imagem final).
- O ambiente burguês-doméstico aparece transfigurado pela fantasia.
- Atmosfera de sonho (acordado): “entredurmo” – a transição entre acordar e voltar a
adormecer. Cf. “Canção meio acordada” (Canções), demonstrando o clima
neossimbolista que condicionou sua formação.
- Personificação das coisas: à primeira claridade do sol, a paisagem se animiza (o sol, o
dia, o verso, tráfego, etc.).
- Quintana introduz a inquietação moderna em um quadro familiar idílico.
- Sugestão da passagem do tempo (nostalgia).
- Quanto à tessitura sonora (plano da expressão): a reiteração do som suave das nasais
/m/ e /n/ (v. 7 e 8) dá ideia de quietude, que concorre para a impressão de tranquilidade
da cena inicial. A fluidez do dia se manifesta na aliteração dos /l/. A vogal /a/, que
predomina na primeira parte e corresponde à expectativa alegre, contrasta com /i/, que
predomina na última parte e corresponde à melancolia. A oposição /a/:/i/ reflete o
paradoxo (v. 5-6) instaurado no plano do conteúdo (sentimento de nostalgia).